domingo, 3 de abril de 2011

Ontem nem sequer jantei

Ontem nem sequer jantei. No computador, escrevia os últimos apontamentos tentando forçar a memória para o teste de amanhã na Universidade.

A televisão como habitualmente, companheira de tantas horas ia-me informando das coisas, coisas importantes.

Disse-me de cursos de ministros, de professores de ministros, executores de políticas, da existência de um título que os defina, que lhes dê importância.
Falou-me de outros que não são ministros mas desejam ser ministros, da sua indignação perante a falta de confirmação das valências do que entre todos é o primeiro.

Explicou-me que no ecrã as pessoas tornam-se mais pessoas, que entre filhos abandonados existem uns mais abandonados que outros, com pais mas sem pais adoptivos, presos, sem o apoio da nossa opinião.

Fez-me acreditar que afinal já não é preciso mais um aeroporto (mas que temos de o pagar porque as expropriações já foram feitas) porque três aeroportos são suficientes, porque três é a conta que Deus fez, porque sim, porque mesmo sem dinheiro podemos fazer romarias nesses locais de culto, olhar o progresso e sentirmo-nos nele.

Convenceu-me que na agricultura, o problema afinal não é a produção mas sim os agricultores, que não souberam semear o dinheiro que receberam, fadado que estava ao crescimento, desperdício de boa vontade.

Explicou-me que lá fora, em Bruxelas, acreditam no caminho que seguimos mesmo que nós não saibamos qual é, tudo uma questão de fé.

Mostrou-me que na Assembleia da República também existem seres humanos com virtudes humanas e defeitos humanos (um abraço à saudosa Odete pela sua maneira honesta de ser, mesmo quando é inconveniente… já lhe sinto a falta), que também se vão embora com não-sei-quantos mandatos, de trabalho intelectual árduo e possivelmente sem entrada directa numa das grandes empresas sedentas de assessores, paciência…

Contou-me a história de um parto numa ambulância, em S.J. da Madeira, a mim, que não sei de ambulâncias mas sei o que é levar uma mulher a parir, a dezenas de quilómetros de distância do local onde resido, noite passada numa pensão, “Ainda não é hoje, o melhor é ir-se embora e vir amanhã.”, eu que não fui, não só porque era o meu primeiro filho(a), mas porque não tinha autocarro àquela hora e não tinha o dinheiro necessário para o táxi.

Fiquei por lá a dormir num quarto de aluguer.
“Pode entrar, já nasceu, parabéns, é uma menina.”, oito horas da manhã.
Uma menina?, mas nas consultas tinham-me dito que era um rapaz.
- Eu queria era um rapaz.
- Vim-me embora cheio de raiva.
- Percorri a pé dezenas de quilómetros pela auto-estrada que ainda não o era a berrar como um louco.
Afinal a médica de família tinha-me enganado
Eu com 18 anos era pai de uma menina, linda, perfeita, graças a Deus.
Passaram-se tantos anos e esta já era a realidade, mesmo quando fizemos um cordão humano e a ministra da saúde, Maria? De Belém? (que nome mais apropriado), e o Sócrates e o Cavaco e tantos, tantos nos disseram que tínhamos de fecundar mais, não nascíamos em número suficiente….
Poderemos nós morrer em número suficiente para garantir as reformas?

Passaram treze horas desde que abandonei o ecrã amigo.
Depois disso fiz o resto do serviço, desliguei equipamentos e luzes, dei um beijo à bebé fechei a porta e fui para o teste.
Tentar o título que tarda.
Mas não quero ser Ministro.
Agora cansado estou a escrever (decididamente a hora não ajuda). Apeteceu-me desabafar…

Amanhã, vou estar coma minha filha (que era para ser filho) e com a outra (que já era para ser menina) e com a outra (que me roubaram) e com a mais pequenina e com o meu pai (que também já partiu) e com os que não estão e todos com que eu possa estar.

É sempre assim, esteja onde estiver…


Solidário,
sendo assim escrevo por eles, em mim…
O texto ainda não está lido, nem publicado e talvez fora melhor que nunca o seja, mas é esse o seu destino, o destino de todos os textos…
Hoje, ao fim de cerca de 17 horas, sem me ligar ao mundo deixo aqui o meu testemunho.

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