terça-feira, 5 de abril de 2011

Do muro e da vergonha I, ou; máquinas que matam pessoas II, ou como se queira entender...

Os muros servem para separar, tapar, para isolar, excluir, segregar.
A existir uma "expressão matemática do muro", com toda a certeza, ela seria "função" do capitalismo.
O sistema social em que vivemos tem como uma das suas premissas a acumulação, e como máxima, a individualização e a consequente exclusão.
Certa nação acolheu por 30 anos um muro que recortava um país ao meio. A esse muro convencionou-se chamar “Muro da vergonha”.
Ora, os muros servem para por fim a hiatos sociais vergonhosos e por isso quase todos podem ser denominados “os muros da vergonha”.
Quem ergue um muro é por que tem vergonha de algo, algo ou alguém para esconder, algo ou alguém para temer.
Degraus sociais cada vez maiores, resultantes de um sistema social meritocrata levam-nos à construção de uma humanidade emoldurada por muros. Barreiras físicas, sociais, ideológicas, étnicas e culturais fazem proliferar muros numa sociedade onde a tolerância escasseia a cada dia que passa. É mais fácil erguer um muro do que tentar solucionar diferenças e incentivar a tolerância.
Exemplo de um muro muito bem erguido pelos pilares da sociedade moderna tem o nome de automóvel:
No século XIX, o estalar dos chicotes lançados sobre os dorsos dos cavalos que puxavam as carruagens sofreram um grande revés. Um barulhento motor a vapor montado sobre a carruagem emudeceu os gritos dos cocheiros e o ricochetear dos chicotes. A partir daí sistemas de travões, de aumento de potência, de fabricação em série, etc, trataram de bifurcar a história da locomoção humana. Para um lado seguiram as carruagens e para o outro o automóvel.
O Benz, desenvolvido em 1855, contava com 2 lugares, 3 rodas e um motor de 4 tempos que o levava a velocidades máximas de 13 Km/h. Foi o primeiro veículo autopropulsionado. Foi o marco onde a diferença entre carruagens e automóveis se tornou visível.
No começo, os automóveis eram abertos, susceptíveis às intempéries do clima. Com a evolução apareceram os vidros, o tecto, portas, etc. O homem logrou locomover-se com mais rapidez, segurança, e sob qualquer clima. As distâncias ficaram mais curtas e, a salvo do clima, o ser humano ficou mais saudável.
A tecnologia aplicada aos veículos, estimulada pelo motor do capitalismo plenamente desenvolvido, transformou os carros em objectos de fetiche e símbolo de status. Com o aumento constante do preço e a crescente fetichização do meio de transporte o automóvel tornou-se um símbolo de status social.
A aristocracia e a burguesia desfilaram, a partir de 1950, em automóveis condizentes com a expansão global do capitalismo moderno, enquanto que o imprescindível Exército Industrial de Reserva (EIR), engrossava as estatísticas de fome e exclusão social. Como já é sabido o capitalismo necessita da seiva humana para azeitar o seu desenvolvimento por dois lados distintos:
- De um lado, a mão-de-obra de onde se extrai a mais-valia e,
- De outro, o EIR, que garante o baixo preço da reprodução da mão-de-obra.
Desde essa época os desempregados de todo o mundo ouvem o inebriante ronco dos cilindros dos motores mais modernos, enquanto que as classes mais altas, apenas sentem as vibrações de dentro dos habitáculos completamente vedados de seus veículos.
Emoldurados por uma mistura de aço, vidro e borracha os mais ricos possuem um muro ambulante a serviço da exclusão social.

A rua, supostamente um local de sincretismo social, de comunhão de todas as classes, credos e origens, transforma-se numa praça de batalha onde os incluídos do capitalismo circulam com os seus automóveis, enquanto que a imensa maioria da população espreme-se em transportes coletivos miseráveis, ou mesmo a pé.
A elevação de mais este muro tomou proporções inimagináveis nos últimos anos. A tecnologia empregada nos automóveis visa, cada vez mais, o isolamento do motorista e dos seus convidados das condições sociais do mundo exterior. A protecção com relação ao clima já foi superada há muito tempo pela protecção com relação às adversidades sócio-economicas. A modernidade dos séculos XIX e XX foi comprimida pela ausência de homogeneidade e pela individualização que traz a pós-modernidade. O carro tornou-se o simulacro da realidade, tornou-se o ambiente que permite à elite circular pelo meio da pobreza protegidos das intempéries dos excluídos.

Em Portugal o muro é cada vez mais evidente. O País é hoje um dos maiores consumidores de carros topo-de-gama da Europa, enquanto que cerca de 50% da população vive com o ordenado mínimo e alguns até na miséria. Cada vez mais o muro é mais denso e o fosso mais profundo. A indústria automobilística mobiliza os seus projectos para produzir pedaços de metal hermeticamente fechados e protegidos da realidade. A tecnologia costura revoluções no sentido de resguardar os possuidores de autopropulsionados daquilo que efectivamente os cerca.
Rodas e motores fazem avançar rápido; teto, ar condicionado, ar quente protegem do clima, vidros blindados da violência; aparelhos de CD protegem do som externo; volantes e estofos confortáveis, da textura; enfim, um automóvel topo-de-gama consegue isolar 4 dos nossos 5 sentidos de percepção.
A minha ténue esperança é que os vidros dos carros ainda cumpram a função de postigo e nos permitam espreitar o lado de fora para que saibamos que algo necessita ser feito e que com certeza encapsular os seres humanos num mundo do lado de fora dos carros não é a solução.
Desse último resquício de contacto entre um lado e outro do muro é que resta uma ponta de esperança. Ainda nos dias de hoje costuram-se tentativas de reduzir o número de muros e de aumentar a tolerância. Esse último vão que nos permite enxergar o lado de lá ainda nos traz esperança por meio de promessas.
Promessas são o resultado de gente que luta para que este último postigo, essa última janela, esse último sentido humano, sirva para formar consciência e lutar com eles contra o fecho hermético desse muro social. As promessas são, pragmaticamente, tudo e todos que por meio de acções, se comprometem em não deixar a janela fechar-se e dão esperanças sobre um mundo melhor sem muros. As promessas de um mundo mais justo e sem muros tem como força de trabalho essas pessoas que incentivam e promovem a equidade social.
Quanto menor o hiato social e quanto maior a tolerância, menos os muros se sentem fortes para crescerem cada vez mais. Quanto mais prometido está um mundo melhor sem muros, mais os buracos nele aumentam e menos um tijolo é empregue na sua construção.

É urgente construir consciência por meio das pessoas convictas da melhor evolução da humanidade com menos muros e que por isso, por meio de promessas, ganhem adeptos que auxiliem na redução das barreiras. Não precisamos de demagogos e promessas vazias, mas sim promessas fundamentadas no empírico. Promessas que imbuam as pessoas a olharem por essa última janelinha no muro. Promessas que sirvam como uma voz do outro lado tentando aliciar-nos a conhecer essa outra realidade. Uma imagem, um som que ao menos crie a curiosidade de saber o que se passa do lado de lá.

Gosto de muros que caem.
Gosto de limites que se transpõem.
Sobretudo, gosto da esperança que enche o coração de quem acredita.
Trinta anos depois, continua a haver muros por cair.
Uns, de tijolo.
Outros, feitos do preconceito, de rancor, de ódio, de medo, de ignorância, de sobranceria, de insensatez.
E são estes, os metafísicos, que, trinta anos passados, me aterrorizam e me dão vontade de, pelo sim, pelo não, andar sempre com um martelo no bolso, não vá haver um tijolito ou outro para deitar abaixo.

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